Que a população está infeliz com o governo atual todos já sabem, mas isso não significa que o regime do país tenha fracassado, ao contrário, está apenas evoluindo
Em 2013, o povo saiu às ruas contra o governo. Em 2015, a situação se repete e fica a pergunta:
o sistema pelo qual o Brasil é regido faliu? | Foto: Eraldo Peres/AP
o sistema pelo qual o Brasil é regido faliu? | Foto: Eraldo Peres/AP
Marcos Nunes Carreiro
Falência. Insucesso. Fiasco. Naufrágio. Falecimento. Ruína. Derrocada, malogro, colapso, desilusão, fracasso. São todas palavras que podem definir a atual situação política brasileira. Será que podem mesmo?
Nos últimos anos, após os sucessivos escândalos políticos que acometeram o Brasil, não foram raros os especialistas, cientistas políticos, autoridades e pesquisadores que apareceram falando sobre a “falência” do sistema político do país. E esta palavra, que virou uma espécie de jargão, foi reavivada na semana passada logo após a divulgação da lista de políticos envolvidos no esquema de corrupção, conhecido por “petrolão”, deflagrado pela Operação Lava Jato.
Os argumentos para os defensores do “fracasso” político brasileiro vai ao encontro do entendimento de que o país se modernizou nos últimos anos, mas tal modernidade não foi acompanha pelas práticas políticas, o que acabou criando um grande descompasso entre eleitores e eleitos. Contudo, é preciso analisar a situação para além da insatisfação popular com a atual situação brasileira, que é real, mas demanda estudos mais aprofundados.
Com base nos trabalhos acadêmicos voltados para o entendimento político-social, existem duas possibilidades de análise, como pontua o cientista político Francisco Tavares, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). A primeira trata da seguinte questão: existe uma corrente, de teoria política e teoria do Estado, que entende ser o próprio Estado liberal-democrático — esse Estado de direito, constitucional, que surge na virada do século XVIII para o século XIX — contraditório. Isso porque tenta superar as desigualdades criadas pelo mercado, ao mesmo tempo em que se alimenta desse mercado.
Um exemplo: o Estado quer evitar que haja fortunas muito significativas por entender que tais acúmulos de capital podem produzir desigualdades muito grandes e levar a sociedade a um colapso. O que ele faz: tributa. Porém, a partir do momento em que tributou essas grandes fortunas, o Estado passa a depender da ocorrência delas para financiar sua máquina. Ou seja, é um combate de algo que tem, ao mesmo tempo, sua criação estimulada.
Cientista político Francisco Tavares: “Brasil não vive ‘falência’ de modelo político, mas atravessa uma crise” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Devido a isso esse tipo de sistema democrático liberal seria estruturalmente problemático e contraditório, o que gera, episodicamente, crises de legitimação e de política. Como diz Tavares, para quem pensa dessa maneira, logo o Brasil não vive uma “falência” de seu modelo político, mas apenas atravessa mais uma crise inerente ao modelo, visto que tivemos um momento de saturação econômica que coincide com um desgaste do governo. Isto é: “nenhuma novidade”.
Por outro lado, há várias correntes que entendem ser a democracia liberal uma forma bastante estável de gestão da sociedade, o que faz da crise, na verdade, o motor propulsor do Estado. “É aquela história de que, em uma democracia capitalista, é possível trazer o conflito para dentro do Estado, chamá-lo de eleições e fazer a sociedade girar sem precisar matar o oponente ou fazer uma guerra. É a teoria do liberalismo entendido como fechado”, aponta.
Para essa teoria, quando há uma crise, ela deve ser lida sob duas possibilidades: a primeira trata de uma crise de regime, em que as pessoas não querem mais votar, não reconhecem mais as autoridades, sendo possível que ocorra até um golpe, uma revolução. A outra diz respeito a uma crise de governo, em que uma gestão especificamente não consegue atender mais às demandas da sociedade, seja por problemas com sua colisão governativa no Congresso; por não conseguir mais coordenar o próprio partido; porque a popularidade caiu; ou, no caso brasileiro, uma conjunção desses fatores.
Crise sim, mas do governo
Então, de acordo com essa corrente, o que vivemos no país atualmente é, no máximo, uma crise de governo e as pesquisas de opinião pública são claras nesse sentido. “Tanto o Latinobarómetro [organização sem fins lucrativos situada no Chile responsável por medir a opinião pública em 18 países da América Latina], como pesquisas de institutos particulares mostram que a confiança do brasileiro na democracia cresce ano após ano. Se o governo atual não tem popularidade, é outra história”, relata o cientista político.
Ou seja, não há uma “falência”, mas uma mudança. E isso ocorre porque qualquer sistema político, sobretudo o democrático, é um organismo vivo, ou seja, evolui. Por isso, o mais certo a se dizer é que o país passa por um momento de mudança, muito devido a ser jovem em relação a outras democracias, se considerado o que é democracia para a Europa ou Estados Unidos, que têm uma trajetória mais longa que a do Brasil.
O cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Alexandre Gouveia lembra que os brasieliros estão votando por eleições diretas há apenas sete eleições, desde o processo de redemocratização. “O tempo de um país é diferente do tempo das pessoas. Nós temos 40 anos como economicamente ativos, tempo curto para um país, que vive por meio de uma corrida de revezamento. O país possui ciclos de transformação e as gerações vão evoluindo ao longo disso.”
A questão é: o Brasil foi construído sobre um sistema político-eleitoral que era adequado à época de sua formação, pois fazia referência a outra cultura e quantidade de pessoas. Atualmente, entretanto, o país é outro, logo precisa de outro regramento eleitoral para mudar o sistema de eleição e de representação.
Isso mostra que mudanças são necessárias à jovem democracia brasileira, que ainda conta com personagens que começaram a atuar politicamente na época do coronelismo e do militarismo e que ainda estão acostumados, por exemplo, às conhecidas sucessões políticas, aquelas em que pais passam seus legados políticos para os filhos.
E tudo isso toca em um ponto primordial: a educação política da população.
O país precisa de uma população alfabetizada democraticamente
Falta educação democrática na população brasileira. Se isso for modificado, o país passará a ter uma população com informações básicas para o bom entendimento e o uso de seus processos | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Alexandre Gouveia, professor da UnB, estava em São Paulo quando atendeu à ligação da reportagem. Ele iria participar, na quinta-feira, 12, do Prêmio Itaú-Unicef, que premia inciativas de educação integral. Sua presença na cerimônia se deu justamente por um projeto cujo objetivo é influenciar a educação política dos alunos em oficinas de contraturno em escolas públicas de tempo integral.
A iniciativa, segundo ele, surge da necessidade de haver no Brasil uma melhor formação democrática, de cidadania. Isso acontece porque ainda existe no país uma ignorância política, uma falta de conhecimento. Isto é, não há medidas e valores na população que permitam a ela julgar com clareza, por exemplo, a situação atual em que se encontra.
O exemplo disso é estarmos em um novo período de manifestações poucos meses depois da última eleição, que foi a mais acirrada entre todas as do período da redemocratização. “De fato temos uma população insatisfeita com a classe política, porém, há um contraponto: essa mesma população que sai às ruas para se manifestar elege os mesmos atores políticos sempre. Isso demonstra falta de conhecimento e amadurecimento político, o que nasce, justamente, dessa falta de educação, de uma alfabetização democrática, de entender a situação em que estamos”, analisa.
Uma forma, segundo ele, para melhorar a educação do país é atingir, sobretudo — não unicamente — crianças e jovens por meio de projetos nas escolas de tempo integral, algo que é previsto no Plano Nacional de Educação (PNE) e que virou compromisso de vários dos governantes que assumiram o comando dos Estados recentemente. Esses projetos atingiriam o contraturno das aulas, que demanda conteúdo de qualidade, uma vez que o aluno vai passar em média sete horas do dia em aula e não pode ter apenas a formação regular, como história e matemática. Vai precisar também de conteúdos lúdicos, sociais, culturais, que discutam a sustentabilidade, o trânsito, energias alternativas, mobilidade urbana. Assim, por que não discutir a política, entender como funciona o sistema?
Cientista político Alexandre Gouveia: “Vivemos as dores do crescimento. Toda sociedade passa por isso e não será diferente com o Brasil” | Foto: Arquivo pessoal
Iniciativas como essa, na visão de Gouveia, farão com que em pouco tempo — 15 a 20 anos — a sociedade tenha novos eleitores e políticos. A questão: se esses novos políticos entenderem que os eleitores de sua geração serão como ele, mais críticos, mais atentos e com dados mais claros em relação à forma e ao conteúdo da política, eles terão que agir de forma diferente. “Ainda hoje, temos comportamentos políticos de pessoas que sabem que não serão punidas nas urnas, porque a população não acompanha. Então, essa ferramenta precisa vir do governo para induzir a iniciativa privada e outras categorias a formar uma nova geração para os próximos 20 ou 30 anos, o que é muito tempo para uma pessoa, mas para um país não é nada.”
O que fala o cientista político é de uma educação cidadã, de ferramentas sociais, de um manual de uso de equipamentos. É ensinar a criança e futuro eleitor como cobrar do político que ela vai escolher os resultados de quem a estará representando. E isso independe de correntes ideológicas, pois se a sociedade tiver pessoas de esquerda ou de extrema direita cobrando de sua classe política da mesma maneira, ela terá pessoas com conhecimento e isso é melhor do que não ter conhecimento algum.
Políticas de austeridade explicam o “15 de Março”
A população está em processo de amadurecimento político, que ainda é pequeno, mas existe. Prova disso é a volta da insatisfação popular às ruas, nos moldes do que aconteceu em junho de 2013. Àquela época, muitos foram os estudiosos a analisarem os protestos como multifacetados ou, para alguns, sem bandeira alguma. Neste ano, porém, há uma bandeira central, a corrupção, e uma secundária, o impeachment da presidente Dilma.
Qual a ligação dos dois momentos? Quem aponta é o cientista político e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas da Universidade Federal de Goiás (UFG), Francisco Tavares. Ele diz que tem estudado, desde 2012, esse ativismo político não institucional no Brasil, isto é, as pessoas que fazem política para além das eleições e da participação em fóruns, como conselhos e orçamentos participativos para a simples influência de mecanismos informais, de geração de opinião pública sobre o Estado. Isto é, pessoas que fazem política nas ruas, que protestam de maneira mais ostensiva para além das instituições.
Segundo ele, essa situação é algo que se torna emergente não apenas no Brasil, mas também em outros países. Ele conta que em abril irá para a Espanha tentar entender o que aconteceu por lá e, em julho, seu destino é a Grécia. “Estamos em contato com pesquisadores do mundo inteiro e o que se percebe é que, a partir da crise econômica de 2008 há uma nova forma de se fazer política, algo que era muito comum nas décadas de 60 e 70 na luta pelos direitos civis e que é retomada principalmente nos países menos desenvolvidos”, diz.
Nesse sentido, Tavares relata que o Brasil se torna um dos vários capítulos de um fenômeno mundial de reativação de lutas sociais: “O que aconteceu no Brasil em 2013; na Praça Taksim, na Turquia; na Grécia; na Espanha; na Ucrânia; e na revolta dos pinguins, no Chile são novos levantes sociais que levam a política para além da institucionalidade.”
E a grande ligação entre todos esses protestos veio da seguinte questão: medidas de austeridade. Tavares conta que existem pesquisas apontando para o fato de que em todos esses protestos realizados no mundo nos últimos anos se mobilizam contra políticas de austeridade. Ou seja, políticas de cortes de gasto no Estado para garantir o funcionamento da máquina. “E isso vale para o 15 de março, porque insatisfação contra o governo sempre existiu, mas porque as pessoas estão indo para as ruas depois de duas medidas provisórias que retiram direitos previdenciários, um aumento na taxa de juros e um corte nominal de 30% no orçamento?”
Isso dá clareza ao assunto, ao mesmo tempo em que liga a questão à segunda suposta bandeira das manifestações deste domingo. Contudo, a crise de governo, embora legítima, ainda não se mostra suficiente para depor a presidente, assim como é possível afirmar que a alegada “falência” do sistema político brasileiro é mais um desejo de alguns que exatamente uma realidade.
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